Marcelo Madeira Cunha

Marcelo Madeira Cunha

Advogado desde 2009, regularmente inscrito na OAB/SC sob o n.27567.
- Pós graduado, com especialização em Direito Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina.
- Atuação em consultorias, defesas em inquéritos policiais, procedimentos de investigação, processos criminais, inclusive como assistente de acusação, processos de competência do Tribunal do Júri, etc.

Atendimento com hora marcada, pronto para atendê-lo.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

A autonomia da Polícia Federal e o Estado Democrático de Direito

Enquanto tentamos salvar nossas vidas, preocupados com o Covid-19, a autonomia da Polícia Federal é colocada em questão, pertinente a reflexão sobre alternativas para que os órgãos de persecução penal não sejam entendidos como meros equipamentos do governo, pois são instituições do Estado.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

"Teje preso" e "a ordem das coisas"



Marcelo Madeira Cunha, advogado criminalista, pós graduado com especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina.

            O sistema penal possui o gosto amargo do autoritarismo, e não é porque as leis são benéficas ou más aos acusados, é porque as leis infraconstitucionais ainda carregam consigo o peso da inquisitoriedade estampada em seu corpo. São normas penais e processuais penais que enfrentam e desmerecem abruptamente a sua própria inconstitucionalidade. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, qualquer lei anterior a Carta Magna que apresente conteúdo contrário aos seus ideais, dentre os quais, a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais, devem ser abolidos por clara inconstitucionalidade tácita (não expressa). Porém, ainda há atores do direito penal que se utilizam das normas inconstitucionais sob o manto da legalidade – sustentam que não foram revogadas e por isso permanecem válidas – causando prejuízos nefastos àqueles que sofrem o peso de uma acusação. Não há regras bem definidas, e a ordem das coisas nem sempre é respeitada.
            Luigi Ferrajoli, citado por Salo de Carvalho[i], muito bem definiu que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos.”
            Carvalho[ii], aponta que “as ciências criminais – concebidas como integração entre as técnicas dogmáticas do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal -, direcionadas a anular a violência do bárbaro e a afirmar os ideais civilizados, ao longo do processo de constituição (e de crise) da Modernidade, produziram seu oposto, ou seja, colocaram em marcha tecnologia formatada pelo uso desmedido da força, cuja programação, caracterizada pelo alto poder destrutivo, tem gerado inominável custo de vidas humanas”.
            A força autoritária está ainda no Código Penal, que é de 1940, e no Código de Processo Penal, que é de 1941, ambos ainda possuem inúmeras alterações por meio de leis novas, bem como, ainda, existem as leis especiais extravagantes (leis fora dos respectivos códigos).
Não obstante, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu corpo a ideologia de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Trouxe em seu corpo estrutural, os direitos e garantias fundamentais (art.5º e seguintes) antes mesmo da própria organização do Estado (art.18 e seguintes). Não se trata de mera distribuição aleatória, mas o grau de importância dado ao tema pelo constituinte, pois a Constituição Federal já em seu artigo 1º, inciso III, apresenta a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito e, portanto, a localização dos direitos e garantias fundamentais antes da organização do Estado demonstra que o poder público deve preservar com máxima prioridade tais fundamentos.
             É fácil verificar a divergência ideológica entre os diplomas legais (Código Penal e Código de Processo Penal) com a Constituição Federal de 1988. Isso porque a respeito do tema que será levantado no presente texto, o Código de Processo Penal possui amparo em um período que predominava o autoritarismo no Brasil. Trata-se do Estado novo, a Era autoritária do governo de Getúlio Vargas, quando o Código de Processo Penal foi elaborado com amparo ideológico do Código de Processo Penal da Itália fascista de Mussolini.
            O modelo autoritário é inquestionável. O então Ministro da Justiça Francisco Campos apresentou ao presidente Getúlio Vargas os motivos pelos quais a legislação processual deveria ser alterada, afastando todo tipo de presunção de inocência sob o manto de tratar-se de “pseudo-direitos individuais em prejuízo do bem comum”, veja-se o pequeno trecho a seguir transcrito[iii]:
“As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social.”
            E mais:
“O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos.”
            Ainda hoje o discurso perdura, não obstante após quase 32 anos de promulgação da Constituição Cidadã e todo terror e arbitrariedades históricos sob o manto de preservação da ordem, tudo com o nefasto amparo em textos legais que afrontam a atual Constituição Federal. Pela ordem das coisas são inválidas, por óbvia inconstitucionalidade, qualquer regra que contrarie o texto, fundamentos e princípios constitucionais.
            -“Teje” preso!
            Imagine as situações que lhes apresento. Você está em casa dormindo com sua família, e às 6 horas em ponto chutes na porta e arrombamento, homens de preto, armas em punho, dizendo, “caiu a casa”, “perdeu, perdeu” e por fim, “teje preso”. Outra situação. Imagine você com seu veículo circulando pelo bairro e de repente, ao virar uma esquina, várias viaturas em uma barreira policial, homens fortemente armados, mandam parar. Quem não ficaria nervoso? Você pensa se os documentos estão em dia, se há algo de errado no veículo, mas logo fica sabendo que eles procuram um fugitivo de uma cena de um crime de roubo ocorrido horas antes, cujo veículo possui características idênticas ao seu, arbitrariamente tiram uma foto sua e enviam via aplicativo de celular para outro celular, e alguns minutos depois lhe dão voz de prisão sob acusação de ser o autor do respectivo delito, pois foi reconhecido pela vítima.
            Qual a semelhança entre os dois casos? Embora o primeiro traga um contexto de ação proveniente de investigação da polícia ou do Ministério Público, com mandado de prisão (temporária ou preventiva) expedido pelo(a) juiz(a), onde os policiais aguardaram amanhecer[iv] e entraram na residência para cumprimento do mandado, e o segundo caso apresentar o contexto de uma prisão baseada no estado de flagrância[v], a semelhança está no fato que, os conduzidos nada sabem a respeito dos crimes que estão sendo acusados (perceba que nos exemplos o acusado é você!).
            Nesse momento certamente você já sabe o que fazer. Chamar um advogado. Porém, não há uma cultura própria em nossa sociedade em contratar serviços advocatícios. Os inocentes, na certeza que não fizeram nada de errado, não pedem por advogado e esperam para narrar os fatos ao delegado de polícia, e até aqueles que acham que realmente fizeram algo preferem ficar em silêncio e deixam para constituir defesa na esfera judicial.
Porém, na fase policial as provas são colhidas e apresentadas ao promotor de justiça e ao juiz, sem qualquer participação da defesa. Dessa forma, quando o acusado contrata o advogado o prazo para apresentar defesa é muito pequeno, segundo o artigo 396 do Código de Processo Penal, são 10 dias.
Voltando ao procedimento na delegacia de polícia, os acusados mesmo sendo “advertidos” do direito constitucional de permanecer em silêncio[vi] , e resolvem falar sem a presença do advogado por entenderem – ou fazerem que ele entenda assim -desnecessário, respondem às perguntas pré-definidas pela autoridade policial, sem saber conhecimento das provas contra si. A conseqüência disso? Está produzindo prova contra ele, uma vez que as perguntas pré-definidas da autoridade policial servem justamente para reforçar o que ele (policial) já tem concluído. Parte-se, do criminoso para o crime.
            Eis parte do sistema inquisitório, cujo procedimento ainda espelha aquele exposto no Código de Processo Penal, conforme Renato Brasileiro de Lima[vii] explica:
“Prova do caráter inquisitorial do inquérito policial é quanto ao disposto no art.107 do CPP, segundo o qual não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal. Além disso, em recente alteração do CPP pela Lei n.11.449/2007, passou a ser obrigatória a remessa do auto de prisão em flagrante à Defensoria Pública dentro de 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, caso o autuado não informe o nome de seu advogado (CPP, art.306, §1º). Ora, se a lei impôs remessa do APF em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura, denota-se que a presença do defensor não é obrigatória quando da lavratura do auto, o que acaba por confirmar o caráter inquisitorial do inquérito policial.”
            A legislação determina que o APF (auto de prisão em flagrante) deve ser remetido ao juiz dentro de 24 horas[viii], então se nesse período é que a Defensoria Pública toma ciência de uma prisão que ocorreu sem advogado, é porque na fase policial a presença de defesa técnica (advogado ou defensor público) não é obrigatória, e portanto, inquisitória.
            Qual o papel do advogado? Em que pese o advogado não participar das perguntas (chamado contraditório) no interrogatório, e nem é permitido assistir os depoimentos das outras partes (vítima, testemunhas, policiais, etc.), mas que, por vezes a autoridade policial, por mera liberalidade, ou consciência, autoriza a participação do advogado em certos atos dessa natureza, a presença do advogado é sempre fundamental, uma vez que os direitos fundamentais do conduzido permanecem incólumes, podendo ter entrevista reservada com o advogado antes de seu interrogatório.  Essa entrevista é de extrema importância para que o conduzido não caia na armadilha e forme prova contra si, podendo para tanto utilizar de seu direito constitucional de permanecer em silêncio.
            O advogado deve tomar conhecimento de todas as provas documentadas no inquérito policial ou auto de prisão em flagrante, na delegacia de polícia, e informar seu cliente sobre o que consta e pesa contra ele. Quando o acusado, ainda que na certeza de ser inocente “resolve” falar sem a presença de advogado, o seu interrogatório é documentado e transforma-se em prova do processo.
            Ainda que a confissão, caso fosse, não seja suficiente para condenação sem que tenha compatibilidade ou concordância com as demais provas do processo[ix], dificulta o trabalho da defesa. Mesmo que não seja aplicável, em tese, a inversão do ônus da prova no âmbito penal, a convicção do magistrado ainda prevalece, e com severos resquícios de inquisição provenientes do Código de Processo Penal.
            Como exposto anteriormente, o Código de Processo Penal apresenta muitos choques de realidade, uma vez que baseado no autoritarismo e em total contraste com a ordem constitucional vigente. A exemplo disso, o art.198 do Código de Processo Penal ainda prevê a possibilidade do silêncio do acusado ser elemento para a formação do convencimento do juiz. Por outro lado, a Lei 10.792/2003, trouxe redação confrontante no art.186, do mesmo código, estabelecendo que, depois de qualificado, e antes de seu interrogatório, o acusado será informado pelo juiz, de seu direito de permanecer calado e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas. Ainda, no parágrafo único do art.186, expresso está que o silêncio não importará em confissão e não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Apesar disso, o art.198 permanece no Código de Processo Penal, mas deve-se entender como revogado de forma tácita.
            Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Junior, sobre a vista grossa de muitos, acerca das inconstitucionalidades das leis penais e processuais penais ainda aplicadas, refletem que: “o fetiche pela legislação infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias e antidemocráticas.”[x]
            Veja-se que o art.155 do Código de Processo Penal define que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
            E ai? Tudo que foi produzido na fase inquisitorial servirá de conteúdo para proposição de uma ação penal, e muito embora o artigo acima exposto sustente que o juiz não poderá formar sua convicção exclusivamente pelos elementos produzidos na fase policial, a repetição de tais atos na esfera judicial, sob o crivo do contraditório tornará possível a utilização de tais dados para fundamentar sua decisão.
            Uma defesa constituída no primeiro momento é fundamental para um processo bem estruturado e com melhores condições de atuação. Não é papel do advogado cumprir protocolos procedimentais, apenas. Deve ter condições de participar da produção e discussão das provas apresentadas, na mesma medida que a acusação, com suporte dos princípios do contraditório e da ampla defesa. O advogado não pode ser uma peça decorativa do processo.
            De toda forma, na prisão em flagrante muitas vezes a situação parece pior, porque as provas que seguem para o judiciário, de praxe, são aquelas existentes de um único ato, ou seja, o depoimento da vítima, das testemunhas (maioria das vezes policiais que efetuaram a prisão) e o interrogatório do acusado.
            Sendo assim, se a defesa não atuar com esmero desde o primeiro momento, considerando o sistema processual inquisitório, ainda vigente, que estabelece em suas diretrizes que o “criminoso” não merece garantias e favores e que na lei processual “não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos” (afasta-se a presunção de inocência), restará a ele, “criminoso”, a sorte de um julgador, que escolherá qual a ordem das coisas. De toda forma, é a atuação da defesa que vai fazer o processo seguir a ordem constitucional, ainda que de forma recursal, liquidando qualquer prejulgamento autoritário e inquisitório, mesmo que lastros enormes persistam em nossa legislação, jurisprudência e doutrina. É dever do advogado criminal lutar pela ORDEM DAS COISAS.
           
             





[i] Carvalho, Salo de. Antimanual de Criminologia / Salo de Carvalho – 5 Ed. – São Paulo: Saraiva. 2013. p. 29
[ii] Carvalho, Salo de. Antimanual de Criminologia / Salo de Carvalho – 5 Ed. – São Paulo: Saraiva. 2013. p. 29
[iv] Art.5º, XI, CF/88 – A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
[v] Art.302 do CPP – Considera-se em flagrante delito quem: III –é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração;
[vi] Art.5º, LXII, CF/88 – O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família ou do advogado.”
[vii] Lima, Renato Brasileiro de; Manual de processo penal, vol.I / Renato Brasileiro de Lima – 2ª Ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 130.
[viii] Art.306, §1º do CPP – Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
[ix] Art.197, CPP – O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.
[x][x] Rosa, Alexandre. In dúbio prohell: profanando o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2014.p.13.

terça-feira, 31 de março de 2020

A responsabilidade do Estado sobre o apenado



O DIREITO É DE QUEM?

Marcelo Madeira Cunha
Advogado criminalista


O Estado assumiu para si a responsabilidade pela persecução penal (investigar e processar) e o jus puniendi (direito de punir). As penas corporais deixaram de existir a muito tempo, sendo que a sentença condenatória delimita a atuação estatal sobre o "corpo do indivíduo". A partir do início do cumprimento da pena é necessário compreender que não cabe mais analisar o conteúdo e o mérito do delito cometido, sendo que as condições de progressão e demais benefícios estão previamente previstos em lei (ex:crimes comuns, crimes hediondos). As considerações acerca da periculosidade do indivíduo, ou do crime cometido são feitas quando realizada a aplicação da pena, na sentença. Assim, na execução penal não podemos ultrapassar aquilo que a sentença definiu, e a dignidade da pessoa humana é principio fundamental da República. De toda forma, é dever e responsabilidade do Estado os cuidados gerais em relação ao preso, uma vez que ele encontra-se sob sua custódia.
Diante da atual situação de pandemia Covid-19, há de relativizar as consequencias da condenação em prol da vida coletiva, pois o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário já foi confirmado e continua sendo uma realidade. Até quando veremos o de baixo como inimigos? (Assista "O Poço")

domingo, 29 de março de 2020



O abismo.

Marcelo Madeira Cunha

Advogado criminalista, pós graduado com especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina.


                                                               Em tempos de pandemia do Covid-19 (Coronavírus), percebo uma campanha de solidariedade em prol do atendimento às recomendações apresentadas pelo poder público nas medidas de combate e enfrentamento ao vírus, causando a união de todas as classes sociais, do morro ao asfalto, do “Estado-oficial” ao “Estado-paralelo” (No Rio de Janeiro, o tráfico determinou o isolamento e proibiu a subida de turistas), todos capitaneando a mesma campanha do “fica em casa”.

                                                               Os decretos dos governadores, ressalto em espécie o de Santa Catarina, minha realidade, apresentam aquilo que o povo chamou de quarentena, mas na verdade é o afastamento social, uma recomendação para permanecer em casa, cujo objetivo é evitar que o vírus atinja uma quantidade de pessoas que comprometa o limite do atendimento hospitalar, que não possui condições de atender grande demanda, face o alto índice de contaminação, e a velocidade da letalidade que possui o Coronavírus.

                                                               A quarentena é uma determinação imposta às pessoas ou coisas suspeitas de contaminação com o Covid-19 em locais sem convívio com outras para confirmar, ou não, a suspeita e evitar a propagação. O isolamento, por sua vez é utilizado para pessoas que a contaminação está confirmada. Então, temos claro que o isolamento social é uma recomendação. Eu chamarei de afastamento social para evitar confusão com o termo isolamento.

                                                               Retornando à questão levantada, ressalto que na acirrada campanha dos brasileiros não há presença de imposições no campo punitivo penal. Há uma campanha de solidariedade entre todas as classes, em prol de um bem maior, a saúde pública e a VIDA.  
        
                                                               Talvez, passe despercebido por muitos que essa consciência ética tem predominado em relação a uma possível sanção penal, uma vez que não há veiculação dos reflexos penais pelo descumprimento das medidas. Muito embora os cuidados, ninguém pode garantir que não seremos contaminados mesmo em afastamento social, mas seguem na campanha moral, de afeto, de cuidado com todos, não apenas consigo. Os amigos incentivam e orientam uns aos outros, vizinhos fazem compras para idosos que não conhecem, etc., fato ocorrido em todo canto, do morro ao asfalto, indiferente de nível intelectual. Assim, percebe-se que há toda informação básica e estruturada sobre os cuidados, e de conscientização acerca da pandemia Covid-19. Uma educação com qualidade, e condições dignas de vida, desconstrói o discurso punitivista do Estado. Para muitos, isso não é novidade, mas falta reflexão.

                                                               No final de 2019, foi editada a Lei 13.964[i], que entrou em vigor dia 23 de janeiro de 2020, apelidada como “Pacote Anticrime”, festejada por uns, enganados ou comprometidos pela promessa de impedir a criminalidade. Por outro lado, não faltaram críticas. A razão das críticas paira, para interesse desse escrito, na ilusão que a respectiva lei teria êxito em extinguir a criminalidade. É fato comprovado que endurecer as penas e criminalizar novas condutas não extingue a criminalidade, ninguém deixa de cometer um crime porque a pena é elevada, também devemos considerar que a criminalização de novas condutas não auxilia na diminuição da criminalidade, na verdade aumenta, pois se novas condutas são criminalizadas, novos crimes surgirão. Conclui-se então que só há um jeito de acabar com a criminalidade, acabando com as leis penais. Eu sei, é utópico.

                                                               Não defendo tal medida abolicionista, mas fica claro que existindo informações básicas, educação, e mais igualdade social, a conduta do povo muda e afasta o braço punitivista do Estado. O Professor Luiz Flávio Gomes[ii], já apontou que:

Não faremos melhoras enquanto não nos conscientizarmos que a redução da criminalidade violenta está diretamente ligada à igualdade do país (escolarização de todos, aumento da renda per capita etc.) bem como ao modelo de política criminal que ele desenvolve (que deve priorizar a prevenção, em detrimento da repressão). O erro no Brasil começa que não temos políticas públicas socioeconômicas e educacionais eficazes nem sequer por aqui existe o império generalizado da lei repressiva (sempre preferimos o caminho errado da “severidade da pena” em lugar do rumo certo da “certeza do castigo”; sempre priorizamos a repressão à prevenção).”

                                                               A educação eleva o ser, informa e constrói atitudes positivas, abre portas, dá dignidade. Por outro lado, a falta de condições mínimas de sobrevivência, o abandono estatal, em relação à moradia, segurança, condições sanitárias adequadas, a fome, tudo isso desestimula e dá força à evasão escolar, em busca de sustento e conseqüente subemprego. Há uma música da banda Nação Zumbi, chamada Fome de Tudo, que diz: “a fome tem uma saúde de ferro, forte como quem come”.

                                                               Alguns condenados por crimes conhecidos como “do colarinho branco”, Eduardo Cunha, Marcos Valério e outros foram beneficiados com a prisão domiciliar dia 26 de março de 2020 com base na pandemia do Covid-19[iii]. Por outro lado, em uma decisão judicial proferida em 25 de março de 2020, em Frutal/MG o juiz das execuções penais negou a prisão domiciliar para presos do grupo de risco e apontou que os defensores agem com oportunismo exacerbado[iv].

                                                               Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr, em sua obra In dúbio pro hell, indagam: “Mas, afinal, os juízes estão ao lado do bem, ou não?”.  E mais: “O funcionamento do sistema penal deve partir do necessário respeito ao princípio maior – a dignidade da pessoa humana – em oposição à lógica persecutória que no passado organizou sistemas voltados para a implacável persecução dos indesejáveis, tidos como inimigos.”[v]

                                                               O Código de Processo Penal é de 1941, o Código Penal de 1940. Ambos são de origem autoritária, com reflexos inquisitoriais, e as alterações legislativas os tornaram uma colcha de retalhos, sem esquecer ainda das leis penais e processuais penais à parte. Essa situação reflete em uma parcialidade dos atores do sistema penal que amparam-se na legalidade e, segundo Alexandre e Salah “propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada no devido processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo”.[vi]

                                                               Não obstante a vigência da Lei Infraconstitucional, nossa Constituição Federal, promulgada em 1988, trouxe uma regência à dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais expressos como a ampla defesa e o contraditório. Porém, ainda há quem priorize suas decisões na sua própria realidade, franqueando benefícios àqueles dos quais mais se identificam e afastando o direito àqueles que enxerga como inimigos.

                                                               Enquanto houver tamanha desigualdade social, sempre haverá o inimigo, com julgamentos recheados de íntimas convicções e pautados em uma legalidade pra lá de inquisitória.

                                                               Heidi M. Hurd[vii] sustenta que algumas pessoas transgridem leis, porém de forma moralmente justificadas, por outro lado, “os sistemas legais vigentes realmente punem alguns transgressores justificados porque tais sistemas carecem de uma defesa legal para todo caso no qual um cidadão desobediente conta com uma justificação moral.” E conclui que “se nossos valores morais incluem os nossos valores sistêmicos, a moral pode compelir algumas pessoas a violar a lei, enquanto, simultaneamente, compele outras a puni-las por sua desobediência plenamente justificada, ou seja, a moralidade pode nos lançar uns contra os outros no combate moral.”

                                                               Enquanto houver um abismo social, intelectual, e o direcionamento de interesses dos atores do sistema penal, a formação da consciência continuará perdendo para o discurso do medo, ampliando as desigualdades.

                                                              




[v] Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. PP. 11 e 13.
[vi] Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. P. 13.

[vii] Hurd, Heidi M. O combate moral / Heidi M. Hurd; Tradução Edson Bini ; revisão de tradução Valter Lellis Siqueira ; revisão técnica Plínio de Toledo Fernandes. – São Paulo : Martins Fontes, 2003 (Justiça e direito). P. 30.