Marcelo Madeira Cunha

Marcelo Madeira Cunha

Advogado desde 2009, regularmente inscrito na OAB/SC sob o n.27567.
- Pós graduado, com especialização em Direito Penal e Processo Penal pela Escola do Ministério Público do Estado de Santa Catarina.
- Atuação em consultorias, defesas em inquéritos policiais, procedimentos de investigação, processos criminais, inclusive como assistente de acusação, processos de competência do Tribunal do Júri, etc.

Atendimento com hora marcada, pronto para atendê-lo.

terça-feira, 31 de março de 2020

A responsabilidade do Estado sobre o apenado



O DIREITO É DE QUEM?

Marcelo Madeira Cunha
Advogado criminalista


O Estado assumiu para si a responsabilidade pela persecução penal (investigar e processar) e o jus puniendi (direito de punir). As penas corporais deixaram de existir a muito tempo, sendo que a sentença condenatória delimita a atuação estatal sobre o "corpo do indivíduo". A partir do início do cumprimento da pena é necessário compreender que não cabe mais analisar o conteúdo e o mérito do delito cometido, sendo que as condições de progressão e demais benefícios estão previamente previstos em lei (ex:crimes comuns, crimes hediondos). As considerações acerca da periculosidade do indivíduo, ou do crime cometido são feitas quando realizada a aplicação da pena, na sentença. Assim, na execução penal não podemos ultrapassar aquilo que a sentença definiu, e a dignidade da pessoa humana é principio fundamental da República. De toda forma, é dever e responsabilidade do Estado os cuidados gerais em relação ao preso, uma vez que ele encontra-se sob sua custódia.
Diante da atual situação de pandemia Covid-19, há de relativizar as consequencias da condenação em prol da vida coletiva, pois o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário já foi confirmado e continua sendo uma realidade. Até quando veremos o de baixo como inimigos? (Assista "O Poço")

domingo, 29 de março de 2020



O abismo.

Marcelo Madeira Cunha

Advogado criminalista, pós graduado com especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina.


                                                               Em tempos de pandemia do Covid-19 (Coronavírus), percebo uma campanha de solidariedade em prol do atendimento às recomendações apresentadas pelo poder público nas medidas de combate e enfrentamento ao vírus, causando a união de todas as classes sociais, do morro ao asfalto, do “Estado-oficial” ao “Estado-paralelo” (No Rio de Janeiro, o tráfico determinou o isolamento e proibiu a subida de turistas), todos capitaneando a mesma campanha do “fica em casa”.

                                                               Os decretos dos governadores, ressalto em espécie o de Santa Catarina, minha realidade, apresentam aquilo que o povo chamou de quarentena, mas na verdade é o afastamento social, uma recomendação para permanecer em casa, cujo objetivo é evitar que o vírus atinja uma quantidade de pessoas que comprometa o limite do atendimento hospitalar, que não possui condições de atender grande demanda, face o alto índice de contaminação, e a velocidade da letalidade que possui o Coronavírus.

                                                               A quarentena é uma determinação imposta às pessoas ou coisas suspeitas de contaminação com o Covid-19 em locais sem convívio com outras para confirmar, ou não, a suspeita e evitar a propagação. O isolamento, por sua vez é utilizado para pessoas que a contaminação está confirmada. Então, temos claro que o isolamento social é uma recomendação. Eu chamarei de afastamento social para evitar confusão com o termo isolamento.

                                                               Retornando à questão levantada, ressalto que na acirrada campanha dos brasileiros não há presença de imposições no campo punitivo penal. Há uma campanha de solidariedade entre todas as classes, em prol de um bem maior, a saúde pública e a VIDA.  
        
                                                               Talvez, passe despercebido por muitos que essa consciência ética tem predominado em relação a uma possível sanção penal, uma vez que não há veiculação dos reflexos penais pelo descumprimento das medidas. Muito embora os cuidados, ninguém pode garantir que não seremos contaminados mesmo em afastamento social, mas seguem na campanha moral, de afeto, de cuidado com todos, não apenas consigo. Os amigos incentivam e orientam uns aos outros, vizinhos fazem compras para idosos que não conhecem, etc., fato ocorrido em todo canto, do morro ao asfalto, indiferente de nível intelectual. Assim, percebe-se que há toda informação básica e estruturada sobre os cuidados, e de conscientização acerca da pandemia Covid-19. Uma educação com qualidade, e condições dignas de vida, desconstrói o discurso punitivista do Estado. Para muitos, isso não é novidade, mas falta reflexão.

                                                               No final de 2019, foi editada a Lei 13.964[i], que entrou em vigor dia 23 de janeiro de 2020, apelidada como “Pacote Anticrime”, festejada por uns, enganados ou comprometidos pela promessa de impedir a criminalidade. Por outro lado, não faltaram críticas. A razão das críticas paira, para interesse desse escrito, na ilusão que a respectiva lei teria êxito em extinguir a criminalidade. É fato comprovado que endurecer as penas e criminalizar novas condutas não extingue a criminalidade, ninguém deixa de cometer um crime porque a pena é elevada, também devemos considerar que a criminalização de novas condutas não auxilia na diminuição da criminalidade, na verdade aumenta, pois se novas condutas são criminalizadas, novos crimes surgirão. Conclui-se então que só há um jeito de acabar com a criminalidade, acabando com as leis penais. Eu sei, é utópico.

                                                               Não defendo tal medida abolicionista, mas fica claro que existindo informações básicas, educação, e mais igualdade social, a conduta do povo muda e afasta o braço punitivista do Estado. O Professor Luiz Flávio Gomes[ii], já apontou que:

Não faremos melhoras enquanto não nos conscientizarmos que a redução da criminalidade violenta está diretamente ligada à igualdade do país (escolarização de todos, aumento da renda per capita etc.) bem como ao modelo de política criminal que ele desenvolve (que deve priorizar a prevenção, em detrimento da repressão). O erro no Brasil começa que não temos políticas públicas socioeconômicas e educacionais eficazes nem sequer por aqui existe o império generalizado da lei repressiva (sempre preferimos o caminho errado da “severidade da pena” em lugar do rumo certo da “certeza do castigo”; sempre priorizamos a repressão à prevenção).”

                                                               A educação eleva o ser, informa e constrói atitudes positivas, abre portas, dá dignidade. Por outro lado, a falta de condições mínimas de sobrevivência, o abandono estatal, em relação à moradia, segurança, condições sanitárias adequadas, a fome, tudo isso desestimula e dá força à evasão escolar, em busca de sustento e conseqüente subemprego. Há uma música da banda Nação Zumbi, chamada Fome de Tudo, que diz: “a fome tem uma saúde de ferro, forte como quem come”.

                                                               Alguns condenados por crimes conhecidos como “do colarinho branco”, Eduardo Cunha, Marcos Valério e outros foram beneficiados com a prisão domiciliar dia 26 de março de 2020 com base na pandemia do Covid-19[iii]. Por outro lado, em uma decisão judicial proferida em 25 de março de 2020, em Frutal/MG o juiz das execuções penais negou a prisão domiciliar para presos do grupo de risco e apontou que os defensores agem com oportunismo exacerbado[iv].

                                                               Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr, em sua obra In dúbio pro hell, indagam: “Mas, afinal, os juízes estão ao lado do bem, ou não?”.  E mais: “O funcionamento do sistema penal deve partir do necessário respeito ao princípio maior – a dignidade da pessoa humana – em oposição à lógica persecutória que no passado organizou sistemas voltados para a implacável persecução dos indesejáveis, tidos como inimigos.”[v]

                                                               O Código de Processo Penal é de 1941, o Código Penal de 1940. Ambos são de origem autoritária, com reflexos inquisitoriais, e as alterações legislativas os tornaram uma colcha de retalhos, sem esquecer ainda das leis penais e processuais penais à parte. Essa situação reflete em uma parcialidade dos atores do sistema penal que amparam-se na legalidade e, segundo Alexandre e Salah “propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada no devido processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo”.[vi]

                                                               Não obstante a vigência da Lei Infraconstitucional, nossa Constituição Federal, promulgada em 1988, trouxe uma regência à dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais expressos como a ampla defesa e o contraditório. Porém, ainda há quem priorize suas decisões na sua própria realidade, franqueando benefícios àqueles dos quais mais se identificam e afastando o direito àqueles que enxerga como inimigos.

                                                               Enquanto houver tamanha desigualdade social, sempre haverá o inimigo, com julgamentos recheados de íntimas convicções e pautados em uma legalidade pra lá de inquisitória.

                                                               Heidi M. Hurd[vii] sustenta que algumas pessoas transgridem leis, porém de forma moralmente justificadas, por outro lado, “os sistemas legais vigentes realmente punem alguns transgressores justificados porque tais sistemas carecem de uma defesa legal para todo caso no qual um cidadão desobediente conta com uma justificação moral.” E conclui que “se nossos valores morais incluem os nossos valores sistêmicos, a moral pode compelir algumas pessoas a violar a lei, enquanto, simultaneamente, compele outras a puni-las por sua desobediência plenamente justificada, ou seja, a moralidade pode nos lançar uns contra os outros no combate moral.”

                                                               Enquanto houver um abismo social, intelectual, e o direcionamento de interesses dos atores do sistema penal, a formação da consciência continuará perdendo para o discurso do medo, ampliando as desigualdades.

                                                              




[v] Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. PP. 11 e 13.
[vi] Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. P. 13.

[vii] Hurd, Heidi M. O combate moral / Heidi M. Hurd; Tradução Edson Bini ; revisão de tradução Valter Lellis Siqueira ; revisão técnica Plínio de Toledo Fernandes. – São Paulo : Martins Fontes, 2003 (Justiça e direito). P. 30.