O abismo.
Marcelo Madeira Cunha
Advogado
criminalista, pós graduado com especialização em Direito Penal e Processual
Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina.
Em
tempos de pandemia do Covid-19 (Coronavírus), percebo uma campanha de
solidariedade em prol do atendimento às recomendações apresentadas pelo poder
público nas medidas de combate e enfrentamento ao vírus, causando a união de
todas as classes sociais, do morro ao asfalto, do “Estado-oficial” ao “Estado-paralelo”
(No Rio de Janeiro, o tráfico determinou o isolamento e proibiu a subida de
turistas), todos capitaneando a mesma campanha do “fica em casa”.
Os
decretos dos governadores, ressalto em espécie o de Santa Catarina, minha
realidade, apresentam aquilo que o povo chamou de quarentena, mas na verdade é
o afastamento social, uma recomendação para permanecer em casa, cujo objetivo é
evitar que o vírus atinja uma quantidade de pessoas que comprometa o limite do
atendimento hospitalar, que não possui condições de atender grande demanda,
face o alto índice de contaminação, e a velocidade da letalidade que possui o Coronavírus.
A
quarentena é uma determinação imposta às pessoas ou coisas suspeitas de
contaminação com o Covid-19 em locais sem convívio com outras para confirmar,
ou não, a suspeita e evitar a propagação. O isolamento, por sua vez é utilizado
para pessoas que a contaminação está confirmada. Então, temos claro que o
isolamento social é uma recomendação. Eu chamarei de afastamento social para evitar
confusão com o termo isolamento.
Retornando
à questão levantada, ressalto que na acirrada campanha dos brasileiros não há
presença de imposições no campo punitivo penal. Há uma campanha de
solidariedade entre todas as classes, em prol de um bem maior, a saúde pública
e a VIDA.
Talvez, passe despercebido por
muitos que essa consciência ética tem predominado em relação a uma possível sanção
penal, uma vez que não há veiculação dos reflexos penais pelo descumprimento
das medidas. Muito embora os cuidados, ninguém pode garantir que não seremos contaminados
mesmo em afastamento social, mas seguem na campanha moral, de afeto, de cuidado
com todos, não apenas consigo. Os amigos incentivam e orientam uns aos outros,
vizinhos fazem compras para idosos que não conhecem, etc., fato ocorrido em
todo canto, do morro ao asfalto, indiferente de nível intelectual. Assim,
percebe-se que há toda informação básica e estruturada sobre os cuidados, e de
conscientização acerca da pandemia Covid-19. Uma educação com qualidade, e
condições dignas de vida, desconstrói o discurso punitivista do Estado. Para
muitos, isso não é novidade, mas falta reflexão.
No
final de 2019, foi editada a Lei 13.964[i],
que entrou em vigor dia 23 de janeiro de 2020, apelidada como “Pacote
Anticrime”, festejada por uns, enganados ou comprometidos pela promessa de impedir
a criminalidade. Por outro lado, não faltaram críticas. A razão das críticas
paira, para interesse desse escrito, na ilusão que a respectiva lei teria êxito
em extinguir a criminalidade. É fato comprovado que endurecer as penas e
criminalizar novas condutas não extingue a criminalidade, ninguém deixa de
cometer um crime porque a pena é elevada, também devemos considerar que a
criminalização de novas condutas não auxilia na diminuição da criminalidade, na
verdade aumenta, pois se novas condutas são criminalizadas, novos crimes
surgirão. Conclui-se então que só há um jeito de acabar com a criminalidade, acabando
com as leis penais. Eu sei, é utópico.
Não
defendo tal medida abolicionista, mas fica claro que existindo informações
básicas, educação, e mais igualdade social, a conduta do povo muda e afasta o
braço punitivista do Estado. O Professor Luiz Flávio Gomes[ii],
já apontou que:
“Não faremos melhoras enquanto não
nos conscientizarmos que a redução da criminalidade violenta está diretamente
ligada à igualdade do país (escolarização de todos, aumento da renda per capita
etc.) bem como ao modelo de política criminal que ele desenvolve (que deve
priorizar a prevenção, em detrimento da repressão). O erro no Brasil começa que
não temos políticas públicas socioeconômicas e educacionais eficazes nem sequer
por aqui existe o império generalizado da lei repressiva (sempre preferimos o
caminho errado da “severidade da pena” em lugar do rumo certo da “certeza do
castigo”; sempre priorizamos a repressão à prevenção).”
A
educação eleva o ser, informa e constrói atitudes positivas, abre portas, dá
dignidade. Por outro lado, a falta de condições mínimas de sobrevivência, o
abandono estatal, em relação à moradia, segurança, condições sanitárias
adequadas, a fome, tudo isso desestimula e dá força à evasão escolar, em busca
de sustento e conseqüente subemprego. Há uma música da banda Nação Zumbi,
chamada Fome de Tudo, que diz: “a fome tem
uma saúde de ferro, forte como quem come”.
Alguns
condenados por crimes conhecidos como “do colarinho branco”, Eduardo Cunha,
Marcos Valério e outros foram beneficiados com a prisão domiciliar dia 26 de
março de 2020 com base na pandemia do Covid-19[iii].
Por outro lado, em uma decisão judicial proferida em 25 de março de 2020, em
Frutal/MG o juiz das execuções penais negou a prisão domiciliar para presos do
grupo de risco e apontou que os defensores agem com oportunismo exacerbado[iv].
Alexandre
Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr, em sua obra In dúbio pro hell, indagam: “Mas, afinal, os juízes estão ao lado do
bem, ou não?”. E mais: “O
funcionamento do sistema penal deve partir do necessário respeito ao princípio
maior – a dignidade da pessoa humana – em oposição à lógica persecutória que no
passado organizou sistemas voltados para a implacável persecução dos
indesejáveis, tidos como inimigos.”[v]
O
Código de Processo Penal é de 1941, o Código Penal de 1940. Ambos são de origem
autoritária, com reflexos inquisitoriais, e as alterações legislativas os
tornaram uma colcha de retalhos, sem esquecer ainda das leis penais e
processuais penais à parte. Essa situação reflete em uma parcialidade dos
atores do sistema penal que amparam-se na legalidade e, segundo Alexandre e
Salah “propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias,
deformando na prática a estrutura regrada no devido processo legal e
consagrando cada vez mais o decisionismo”.[vi]
Não
obstante a vigência da Lei Infraconstitucional, nossa Constituição Federal,
promulgada em 1988, trouxe uma regência à dignidade da pessoa humana, direitos
fundamentais expressos como a ampla defesa e o contraditório. Porém, ainda há
quem priorize suas decisões na sua própria realidade, franqueando benefícios
àqueles dos quais mais se identificam e afastando o direito àqueles que enxerga
como inimigos.
Enquanto
houver tamanha desigualdade social, sempre haverá o inimigo, com julgamentos
recheados de íntimas convicções e pautados em uma legalidade pra lá de inquisitória.
Heidi
M. Hurd[vii]
sustenta que algumas pessoas transgridem leis, porém de forma moralmente
justificadas, por outro lado, “os sistemas legais vigentes realmente punem
alguns transgressores justificados porque tais sistemas carecem de uma defesa
legal para todo caso no qual um cidadão desobediente conta com uma justificação
moral.” E conclui que “se nossos valores morais incluem os nossos
valores sistêmicos, a moral pode compelir algumas pessoas a violar a lei,
enquanto, simultaneamente, compele outras a puni-las por sua desobediência
plenamente justificada, ou seja, a moralidade pode nos lançar uns contra os
outros no combate moral.”
Enquanto
houver um abismo social, intelectual, e o direcionamento de interesses dos
atores do sistema penal, a formação da consciência continuará perdendo para o
discurso do medo, ampliando as desigualdades.
[v]
Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando
o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2014. PP. 11 e 13.
[vi]
Rosa, Alexandre. In dúbio pro hell: profanando
o sistema penal / Alexandre Morais da Rosa, Salah H. Khaled Junior. – Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2014. P. 13.
[vii]
Hurd, Heidi M. O combate moral / Heidi
M. Hurd; Tradução Edson Bini ; revisão de tradução Valter Lellis Siqueira ;
revisão técnica Plínio de Toledo Fernandes. – São Paulo : Martins Fontes, 2003
(Justiça e direito). P. 30.